Globo de Ouro
Por: Alberto Gallo
Especialista em Infraestrutura.
PPED UFRJ
Publicado em: 12 de janeiro de 2025 às 20:47
Fernanda Torres venceu merecidamente o Globo de Ouro, com a premiação na categoria como melhor atriz pelo filme “Ainda Estou Aqui”, na disputa concorridíssima e acirrada com verdadeiros monstros sagrados do cinema mundial como: Kate Winslet, Nicole Kidman, Pamela Anderson, Angelina Jolie e Tilda Swinton.
Mas vale aqui, em primeiro lugar, um exercício de reflexão, usando como pano de fundo, o próprio filme “Ainda Estou Aqui” sobre o Brasil da época retratado no cinema, e o Brasil real de hoje, do qual nos deparamos com um país dividido por extremismos abissais, e ainda muito longe de uma democracia, com direitos equivalentes entre a maioria de seus cidadãos. Um eterno Ano Velho.
Mas voltando à ficção, trata-se de um excelente filme “Ainda Estou Aqui”, do também excelente e premiado diretor Walter Salles, que conduz essa obra de cinebiografia com muita leveza, abordando temas espinhosos de forma delicada, com temas corajosos que se passam nos anos de chumbo da década de 70, durante o auge da Ditadura Militar.
Faz-se necessário aqui, uma breve alusão à trajetória de Rubens Paiva (1929-1971), para contextualizar a sua origem, de que nasceu em Santos, no litoral paulista, e se formou em engenharia civil pela Mackenzie, em São Paulo, no ano de 1954.
Depois de um ativismo estudantil foi eleito Deputado Federal por São Paulo em 1962, pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).
Paiva teve um mandado curto: assumiu no início de 1962, e logo após o Golpe de 1964, foi cassado pelo Primeiro Ato Institucional e se auto exilou na Iugoslávia e depois, na França, além de Buenos Aires, isso para encontrar Jango e Brizola.
Ao retornar ao Brasil, voltou a exercer a engenharia e cuidar de negócios, mas manteve contato com exilados, e virou um ativista militante.
E o estopim para o seu sequestro e assassinato pelos instrumentos de repressão da época e o posterior desaparecimento de qualquer vestígio seu, se deu por conta de sua suposta relação com o guerrilheiro Carlos de Lamarca, o foragido mais procurado do país, na ocasião.
E o filme conta com sutilezas, toda essa dor da opressão sofrida, pela falta de informações ou perspectivas, expressados pelo olhar de sua mulher Eunice, protagonista, mãe de seus cinco filhos, que precisou reconstruir sua vida, após a assassinato do marido.
Walter Salles baseou o filme, no livro de Marcelo, filho de Rubens Paiva e Eunice, e que viveu esse período ainda como criança, mas que acompanhou a trajetória de sua mãe e da luta contra o Estado autoritário da época.
E aqui é interessante fazer uma ponte com outra obra de Marcelo, Feliz Ano Velho, seu o primeiro livro publicado em 1982, uma autobiografia que narra a experiência do autor após um acidente que o deixou tetraplégico aos 20 anos de idade, e que também, posteriormente, virou filme de sucesso de bilheteria.
O título traz uma ironia, quando o ano velho representa um passado que se repete, mas que ainda assim, desejamos (os personagens do livro e também nós brasileiros) que consigamos construir um novo tempo que seja pacificado, tranquilo e até feliz.
“Ainda Estou Aqui” não é apenas um filme sobre o passado.
É um alerta para o presente, um lembrete de como é fácil para um Estado com Tribunais Ocultos cruzar a linha tênue entre autoridade e autoritarismo, e perpetuar injustiças para as gerações futuras.
É um chamado, para que estejamos vigilantes, para que valorizemos e protejamos nossas instituições democráticas.
E aí está um grande problema de nosso “Ano Velho”.
Vivemos uma polarização que separa o país em duas torcidas e alguns outros mais. De um lado os progressistas (esquerda) que se julgam ungidos pela democracia e donos da verdade.
Tomam para si como donos da moral e das virtudes do bem, de que só eles pensam nos mais pobres, meio ambiente e igualdade, e tomam para si essa agenda com exclusividade.
E por isso, combatem com agressividade quem não está nessa bolha, o famoso “ódio do bem”.
De outro lado, estão aqueles que enxergam o mundo por outro ângulo, que desejam segurança para trabalhar, desenvolverem seus negócios, promoverem e progresso de suas comunidades e famílias.
Estes são os chamados conservadores (direita), que também flertam com exageros antagônicos sobre o monopólio da razão. O abismo que se forma entre esses dois ambientes é muito perigoso, pois a resposta política se oferece como populismos extremos que consolidam bolhas que não se comunicam, nem dialogam entre si.
Vemos tribos que entram no combate ideológico de celebrar ou não, muitos rechaçando o prêmio da estatueta do Globo de Ouro à Fernanda Torres; por não terem alcance nem compreensão de desfrutar da singeleza narrativa do filme de Salles, com nuances de uma casa de família classe média dos anos 1970, sendo dilacerada por um Estado Autocrático, por “n” razões.
Estamos ainda no Ano Velho, 54 anos após o sequestro de Rubens Paiva, onde ainda hoje o Estado no Brasil continua sendo um sistema arbitrário, coercitivo.
Se antes eram perseguidos os “revolucionários por querer implantar a Ditadura do Proletariado”, agora cria-se um sistema na tangência do Estado Democrático de Direito, para com muita “criatividade” perseguir e punir os chamados “fascistas”.
Até a morte de quem tinha comorbidades, igual ao que aconteceu com Rubem Paiva, que era diabético; recentemente tivemos o caso também do empresário baiano Clériston Pereira da Cunha, conhecido como “Clezão” que morreu vítima de maus tratos, após prisão pela invasão e depredação do Congresso Nacional.
Quando cabeleireiras, aposentados e outros “arruaceiros destemperados” são julgados como se fossem terroristas internacionais, com rigor de uma corte que é declaradamente interessada em perseguir e destruir seus opositores, há algo de muito errado nessa “nossa democracia”.
Somos favoráveis sim, a punição de quem destrói patrimônio público, mas com todos os direitos preservados e respeitados, em seus julgamentos.
Mas é inegável que alguns tribunais estejam praticando excessos e abusos, como bem pontuou o jurista Ives Gandra Martins.
Neste início de ano, é importante um pacto nacional para união e o entendimento. Mas quem proporá?? Cadê a liderança que o fará?
Não faz sentido irmãos brasileiros se digladiarem se acusando de fascistas ou comunistas, num ódio alimentado pelo campo ideológico que hoje ocupa também a presidência da república.
O atual governo insiste num discurso do radicalismo que alimenta essa divisão.
Em falas contínuas de seus expoentes e da primeira-dama, que tratam os conservadores como inimigos a serem destruídos, e a recíproca é verdadeira.
Fabricam eventos para celebrar a democracia, mas contraditoriamente, abraçam as ditaduras vizinhas, que por coincidência ou não, manipularam eleições por meio de fraudes.
A verdadeira democracia, tem que passar, necessariamente, pela liberdade de expressão e opinião.
É inadmissível, por exemplo, que governos controlem através de financiamento, o chamado “consórcio de jornalistas” para que se manifestem em apoio integral e até ferindo a inteligência do povo com “opinião comprada”.
O filme nos lembra que a ditadura não foi apenas um conjunto de atos brutais isolados.
Foi um conjunto de pequenas transgressões do Estado que se infiltrou na vida cotidiana, e que transformou o medo em uma presença constante, e que obrigou as pessoas comuns a se tornarem heróis relutantes.
Eunice Paiva, ao se recusar a desistir, ao continuar “ainda estando aqui”, tornou-se um símbolo dessa resistência cotidiana, que hoje muitos brasileiros se contrapõem a um sistema jurídico que é partidário e perverso, que trabalha para a manutenção perene do partido de viés bolivariano.
Estamos na torcida, que venha o Oscar, mas que, acima de tudo, o sucesso deste filme nos inspire a continuar lutando por um Brasil justo, transparente e democrático.
Afinal, como Eunice Paiva nos ensina, é preciso continuar aqui, resistindo, lembrando, exigindo a transparência dos fatos, e que só assim se exercerá a justiça, onde a democracia não será relativa, mas quem sabe um dia, seja plena.