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Arlindo Cruz, o intérprete do Brasil

 

Identidade brasileira

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Por Paulo Baia

Sociólogo, cientista político, ensaísta e professor da UFRJ

Publicado em: 21 de setembro de 2025 às 14:00

 

 

Há nomes que não pertencem apenas a si mesmos, mas a um povo inteiro. Arlindo Cruz é desses. Não cabe em biografias apressadas, não se resume em prêmios ou discos vendidos, não se aprisiona na frieza das estatísticas. Ele é a melodia que atravessa becos e avenidas, é a lembrança de um refrão entoado em roda de amigos, é a lágrima que escorre no rosto da mãe de família que encontra consolo numa canção, é o riso aberto do trabalhador que, exausto no trem lotado, ainda se deixa embalar por versos que falam de esperança. Arlindo é suave, e justamente por isso foi invencível.

No subúrbio do Rio de Janeiro, entre Oswaldo Cruz e Madureira, onde a cidade pulsa com mais verdade, ele encontrou sua seiva. Ali, no quintal apertado, no botequim barulhento, na quadra fervilhante, forjou-se o artista que cantaria a vida como ela é, sem disfarces nem adornos. Sua música tinha a densidade da ancestralidade africana e a leveza do vento que sopra pelas ruas numa tarde de domingo. Era flor que brotava no asfalto rachado, era rio que corria sem se deixar aprisionar, era sopro que resistia ao peso da opressão.

Arlindo nunca precisou gritar para ser ouvido

Sua força estava justamente na suavidade. Ele mostrava que a resistência não se mede pela dureza, mas pela capacidade de persistir. Se a política oficial insiste em calar vozes, o samba as multiplica. Se a desigualdade insiste em esmagar corpos, a música os levanta. Se a violência insiste em marcar a pele, o canto cicatriza. Ele foi a prova de que o suave, quando nasce do povo, é mais forte do que qualquer estrutura erguida pelo poder.

Não havia distância entre sua vida e sua obra

O homem que ria largo com os amigos era o mesmo que escrevia versos que falavam de amor, de dor e de luta. O pai de família dedicado era também o cronista das ruas. O filho do subúrbio era também o intérprete de um Brasil inteiro. Cada samba que ele compôs carregava não apenas beleza estética, mas também a densidade de um país que resiste todos os dias. Sua música era a tradução daquilo que as estatísticas não alcançam: a dignidade silenciosa do povo brasileiro.

O suave, em Arlindo, era insurgente

Sua ternura era política. Ao cantar o amor, ele lembrava que amar é resistir em um país de ódio. Ao celebrar a vida, ele denunciava a brutalidade de quem insiste em roubar futuros. Ao exaltar a cultura negra, ele desafiava os mecanismos de apagamento e racismo estrutural. Não era a dureza que sustentava sua arte, mas a capacidade de se dobrar, de se reinventar, de se oferecer como flor em um mundo de pedras.

A renovação que ele representava era visível

Renovava o samba sem romper com a tradição. Renovava a esperança sem negar a realidade. Renovava a linguagem da música popular sem esquecer de onde veio. Em cada acorde de seu banjo, em cada verso escrito à mão, havia um gesto de futuro. Não o futuro utópico e distante, mas o futuro que começa agora, no gesto singelo de quem compartilha a roda, de quem divide o pão, de quem abre o coração para a comunidade.

Arlindo era do Brasil

O subúrbio carioca foi sua matriz, mas Arlindo nunca foi apenas do Rio. Era do Brasil inteiro. O nordestino que migrava para a capital encontrava nele um eco de sua saudade. O mineiro reconhecia no seu canto a fé discreta de sua gente. O gaúcho se via na intensidade de suas melodias. O baiano o acolhia como irmão de festa. Arlindo cruzou fronteiras porque falava a língua universal da suavidade, a língua que não se impõe pela força, mas que se oferece como abraço.

 A doença que não conseguiu apagá-lo

Sua vida pessoal também foi resistência. O AVC que o silenciou não conseguiu apagá-lo. Pelo contrário: sua permanência no silêncio tornou-se um grito ainda mais profundo. O corpo que já não respondia era acompanhado por um povo inteiro que se recusava a esquecê-lo. Sua família cuidando dele com amor, seus amigos cantando em sua homenagem, seu público mantendo vivas suas canções — tudo isso mostrava que sua suavidade era maior do que a morte.

Arlindo Cruz, uma espécie de escola de democracia

Na roda de samba que ele tanto amava, cada voz tem lugar, cada instrumento é necessário, cada batida compõe a harmonia. É assim que o Brasil poderia ser: não o país da exclusão e da violência, mas o país da roda, onde todos cabem, onde todos podem participar, onde todos são parte de um mesmo ritmo. Sua música era, portanto, mais do que entretenimento: era um projeto de sociedade.

Ser suave não é ser frágil

É ser, antes de tudo, capaz de atravessar tempestades sem perder a ternura. É ser capaz de enfrentar a dureza do cotidiano sem se tornar duro. É saber que o verdadeiro poder está no gesto pequeno, no riso compartilhado, no canto que se oferece. Arlindo foi essa força. Foi resistência, foi renovação, foi subúrbio e foi Brasil inteiro.

Sua memória servirá de guia

Hoje, quando o Brasil ainda se vê atravessado por desigualdades, violências e desesperanças, sua memória serve de guia. Ele lembra que a beleza é também uma forma de luta, que a suavidade é também uma forma de resistência, que o povo que canta não pode ser vencido. Arlindo Cruz permanece, não apenas em suas gravações, mas em cada coração que se deixa tocar pela sua arte. Permanece porque foi suave. Permanece porque foi do povo. Permanece porque foi, e sempre será, Brasil.

 

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