China Moderna
Por Alberto Gallo
Especialista em Infraestrutura.
PPED UFRJ
Publicado em: 8 de julho de 2025 às 00:19
Recentemente, uma autoridade de alta plumagem — daquelas que deviam zelar pela moral, pelos valores e pela Constituição — em discurso público e tom didático, foi pródigo em elogios ao regime político chinês.
Sim, aquele que nasceu na Revolução de Mao Tsé-Tung, lá nos anos 1949, e que resultou num dos mais duradouros modelos de controle estatal do mundo.
A Revolução Comunista Chinesa foi marcada por reformas radicais, perseguições políticas e uma condução centralizada da vida pública. A história mostra que essa construção foi feita à base de sangue e cruel perseguição aos “inimigos do Estado”.
Com o tempo, veio o “Grande Salto Adiante”, depois a “Revolução Cultural”, e, após muito sofrimento, repressão e realinhamentos ideológicos, surgiu uma nova fase — o “socialismo com características chinesas”.
Foi justamente nesse período posterior, já nos anos 1980, que um novo líder emergiu: Deng Xiaoping. E dele veio a frase que a tal autoridade tentou citar como erudição, mas que o erro demonstrou presunção.
Disse, solenemente, que a ideia era de Xi Jinping — o atual presidente chinês — mas a autoria correta é de Deng. A frase é conhecida: “Não importa a cor do gato, desde que ele seja útil não caçar ratos.”
A metáfora, tinha uma lógica pragmática: mesmo mantendo o controle político do Partido Comunista, ele buscava abrir a economia à lógica de mercado.
Era o nascimento da China moderna, onde o capitalismo floresceu sob os olhos do autoritarismo. Claro que o ilustre sapiente, que fez a confusão é culto, refinado, milionário e de inegável inteligência — não vamos nos apegar a pequenos deslizes. Todo mundo tropeça. Ainda mais em tempos em que tanta gente tropeça e se levanta com uma plástica facial digna de um lifting.
Mas aqui vale um contraponto — ou melhor, uma lembrança providencial: o Papa João Paulo II, que conheceu na pele os horrores do totalitarismo — tanto o nazismo quanto o comunismo — foi enfático ao combater não apenas os regimes opressores, mas o espírito que os justifica: o utilitarismo político.
João Paulo II nunca se deixou seduzir pelo discurso de que os fins justificam os meios. Em várias ocasiões, inclusive durante suas visitas ao Brasil, ele reforçou: “seriam inaceitáveis opções políticas que buscassem o sucesso sem ter em conta os direitos fundamentais do homem: o fim não justifica os meios!”.
Disse também, com a clareza dos santos (este papa foi canonizado em 2013, portanto é considerado santo na Igreja Católica) e a firmeza dos que enfrentaram tanques com orações: a justiça social deve ser alcançada por meios pacíficos, e nem as melhores intenções podem autorizar a violação da liberdade, da dignidade ou do pensamento.
E aqui está o coração da questão. O elogio aos “gatos que pegam ratos” pode até parecer inofensivo, mas escancara uma perigosa lógica de conveniência.
Desde quando caçar ratos — leia-se: conter desinformações, controlar discursos, corrigir narrativas — autoriza que se jogue no lixo os princípios fundamentais de uma democracia?
Entre os direitos inegociáveis está o da liberdade de expressão e pensamento. O direito de se manifestar pacificamente, de discordar, de propor outros caminhos.
E é com espanto — ou tristeza mesmo — que vemos vozes do topo da República defenderem o controle do discurso público. Incentivam, sem pudor, que empresas privadas se tornem censoras de seus próprios usuários.
Terceiriza-se o controle, sob o verniz da “autorregulação”. Mas todos sabemos: empresas não gostam de risco. Por medo de multa, serão sempre mais duras do que o próprio Estado.
E isso não é prudência. É covardia institucional.
Há um provérbio popular que diz: “A noite, todos os gatos são pardos”. E não há nada de racista nesta fala. Diz que no escuro, tudo se confunde e se nivela por baixo.
Que as diferenças desaparecem quando não se pode ver claramente. A autoridade que elogiou o regime chinês talvez tenha se encantado com os resultados: crescimento econômico, controle sobre a população, ordem aparente.
Mas João Paulo II, parece sussurrar ao nosso tempo: “os gatos pardos, por mais eficientes que sejam, exalam um cheiro de mofo moral.” É o odor de quem, para vencer, aceita pisar sobre princípios.
É possível caçar ratos sem renunciar à liberdade. É possível combater o crime sem censura. É possível manter a ordem sem matar o direito de pensar. Mas isso exige mais do que pragmatismo: exige ética.
Não importa a cor do gato, dizem. Mas importa, sim. Importa moralmente o caminho que ele faz, os valores que ele carrega e quem ele morde, quando acha que o rato está na sala errada.
No fim das contas, gato que caça demais pode acabar se achando dono da casa. E quando isso acontece, o perigo já não são mais os ratos — e sim, o próprio gato.