À brasileira
Por Alberto Gallo
Fotos: Arquivo
Publicado em: 1 de agosto de 2025 às 12:15
Não há mais volta. Vivemos recentes agressões ao sistema institucional de tal forma que a constituição de 1988 perdeu o sentido. Um novo país precisa nascer, porque estes que aí estão, não vão construir uma nação próspera.
Há momentos na história em que uma linha invisível é ultrapassada. Não se ouve um estrondo, não há bandeiras hasteadas nem tambores rufando, mas a travessia acontece — sutil como um sussurro, fatal como um decreto. Quando essa linha é cruzada, um pacto civilizatório se quebra.
A travessia do Rubicão, em 49 a.C., marcou um ponto de não retorno na história de Roma e da civilização ocidental. Ao atravessar o pequeno rio Rubicão com suas legiões, Júlio César desafiou diretamente o Senado e violou uma das mais sagradas leis da República: a proibição de que um general armado entrasse com seu exército na cidade de Roma.
O gesto foi mais que militar — foi simbólico. Mas representou o colapso da ordem republicana e o início de uma guerra civil que levaria à queda da República Romana e à ascensão do Império.
A frase atribuída a César, “Alea jacta est” (“a sorte está lançada”), ecoa até hoje como emblema das decisões irreversíveis que mudam o curso da história.
Foi assim, em nosso país, quando uma colônia decide ser nação, quando súditos se proclamam cidadãos, quando a monarquia cede ao povo — ou a um marechal com farda nova.
Foi assim em 1822, em 1889, e em 1988, quando a Constituição Cidadã, prometeu refundar a democracia brasileira. Cada uma dessas datas marca mais que um evento, simboliza uma ruptura. Atravessamos o que se poderia chamar de Rubicão da nossa história. E como Júlio César, ao lançar-se rio adentro, não há como voltar.
Agora, ao que tudo indica, um novo Rubicão foi cruzado.
Mas desta vez, não com gritos de liberdade ou promessas de igualdade.
O Congresso, que outrora se dizia o poder mais próximo do povo, foi reduzido à condição de bibelô institucional. Suas sessões influenciam menos o país, do que os cafés do Supremo, e suas leis podem ser revisadas — ou anuladas — por uma junta iluminada que se intitula guardiã e revisora da ordem democrática.
Não julgam mais fatos. Julgam-se humores, narrativas, intenções presumidas. Se alguém ousar fazer um meme, uma crítica bem-humorada ou mesmo um comentário fora da cartilha, será conduzido ao calabouço — metafórico ou real.
Dizem que é pelo bem. Pela democracia. Mas que democracia é essa que não aceita pluralidade? Que não convive com o erro, o exagero, o mal-estar, o barulho da polis? Que só admite o pensamento domesticado?
Talvez seja o momento de revisitar a teoria do inimigo interno, tão cara aos regimes totalitários. Todo poder absoluto precisa de um espantalho. Na Alemanha dos anos 30 o inimigo era um povo, Stálin teve os kulaks, Chávez teve os imperialistas.
Aqui, o inimigo é difuso, volátil, moldado ao sabor da conveniência: ora é extrema direita, ora o influenciador, ora o pastor, ora o empresário. Qualquer um pode ser o “fascista da vez”, desde que sua existência sirva para exaltar a
Essa é a lógica da guerra permanente: o povo só se une quando sente que está sob ataque. O medo é o cimento do autoritarismo.
E enquanto se distraem com o inimigo do momento, o poder se reorganiza nos bastidores. Institui-se, sem alarde, uma democracia relativa, comandada por uma elite justicialista que decide o que pode ser dito, pensado, julgado e punido.
As punições? Atingem não apenas o réu, mas seus familiares, seus negócios, seus seguidores. A justiça deixou de ser cega. Agora ela enxerga muito bem — desde que o alvo esteja do lado errado da história oficial.
É como se tivéssemos instalado um regime bolivariano com estética parlamentar.
Na República de Bananil, já não se pergunta o que é certo. Pergunta-se quem está certo. E a resposta nunca é jurídica — é ideológica: Vamos saudar a estrela vermelha.
O mais trágico disso tudo é que muitos aplaudem. Muitos sentem alívio. Porque a democracia dá trabalho. Requer maturidade. Tolera a ofensa, o exagero, a discordância. Já o autoritarismo traz ordem — desde que você esteja do lado de dentro da cerca.
Mas o preço é alto. Hoje, ao cruzarmos esse Rubicão, o que perdemos não foi apenas um modelo institucional. Perdemos o horizonte comum.
Perdemos a ideia de um futuro compartilhado. E o que nos resta é um terreno pantanoso onde as palavras valem menos que as intenções atribuídas, onde o medo cala mais que a censura, onde o cidadão vai aos poucos se tornando súdito de novo — desta vez, de toga.
Não há volta. O rio foi cruzado. E o que vem agora não é uma revolução, mas um regime de consenso compulsório, onde só se pode existir dentro dos limites do aplauso. Qualquer desvio é risco. Qualquer dúvida é heresia. Qualquer crítica é traição.
Assim nasce o novo sistema civilizatório da República de Bananil. Não por escolha. Mas por resignação. A esperança é que estes que hora estão por cima, são feitos de um barro tão ruim, tão pútrido, que o castelo deve desmoronar por si só.